RESTAURAÇÃO
Não sei definir o nível, grau e consistência de uma superstição. Só sei que muitos negam, mas lá no fundo tem as suas, sim. Até superstição por dizerem não acreditar nelas. Acho que elas tomam força quando há um coletivo que acredita, então já penso encaixar aí a teoria da conspiração. Bom, tendo ou não tendo, uma delas é que quando se quebra um objeto, melhor jogá-lo fora. A preferência é que seja numa correnteza, mantê-lo significa trazer o azar.
Acontece, que me contrariaria muitíssimo pelo menos deixasse de tentar emendar preciosidades que aos meus olhos se juntariam com maior prazer. Apenas precisaria de muita vontade, paciência e capacidade, é claro. Conheci em Porto Seguro, um senhor que restaurava imagens. Ele era também proprietário do Hotel que hospedamos. Cai por terra qualquer resquício de que aquele ato configurava nova versão do azar.
Suas habilidades e suavidade conjugada à sutileza no pincel que bailava, já começava a dar vida àquele objeto. Ele soprava um pó que parecia talco e este transformava em ouro dando mais brilho ao original. Embebecida pelo que assistia, me convenci completamente que realmente, jamais aquela imagem seria a mesma. Porém teria seus direitos e avessos! Trazia o escultor restaurador, expectativas, tentativas, suposições, anseio. Também um medo incluso em não corresponder ao que se propunha. Uma oração antes, pedindo permissão, um modo de retratar a arte que parecia rompida. Um suor descendo pela face meio a temperatura interna e externa dada a tantas horas de dedicação.
Em contraponto, um resultado que avassala, que enche o peito do feito. Um brilho de quem se atreveu. Uma coragem, determinação, ousadia e um desejo consumado. Uma nova vida se sobrepôs à velha e não brigavam entre si. Harmonizavam, num duplo suporte ou apoio. Democratizavam.
Assim nessa lição de que não dá para apenas colar, mas sim empenhar para fazer o melhor possível, vi o ano de 2020 se espatifar. Cacos de toda espécie. Espelhados, côncavos e convexos. Algumas tentativas sem sucesso de juntar o vidro direto para a lixeira sem proteção a quem recolhesse. Machucar, tanto faz. Vidro por vidro, nos vitrais do descompromisso. Muito objetos, direto e indireto, sujeito e predicados foram jogados, assim, sem medida. Contudo, o único caminho tangível sempre tem uma volta breve. Talvez em formas jamais cogitadas em retornos que irá nos atingir gravemente.
O mundo parecia caquinhos, macroscopicamente ou não. Negação em querer enxergar ou admitir. Como as peças que tem esse destino, o mais fácil seria ficar livres delas. Com ou sem superstições. Mas como? Cadê a onipotência? Cadê o poder incomensurável dos que acham que o detém?
Mas a vida … ahhhh como nos inspira e aspira!!!! Ao pó e do pó insignificante que acumulamos, nos convida a lembrar do nosso real tamanho. A vida, professora master, nos ensina a polir, e trazer o brilho! Nos desafia e nos afia. Nos convida a experimentar a arte de viver com pincéis que muitas vezes dispensam nossos dedos.
Então, em consonância com esse quadro, nos é traçado e permitido 2021! O vejo na sequência, com o mesmo olhar de encantamento que senti na arte de restaurar! No Porto “inseguro” de 2020, uma imagem se fez forte em minha analogia muito pessoal. Como um corsário, cheio de trincas, vulnerável às intempéries, entrava. Não no sentido de entrar, mas entravar, como uma obstrução. Imenso e feito de bambu, bonito e frágil, sem identidade, ou qualquer destino certo. Madeiras bastante deterioradas e no porto ficou. Corsários não foram feitos para ficarem nos portos. Vários níveis, superiores, médios, inferiores. Não tinha um nome próprio a referida embarcação.Arrisco a dizer que vi ali,2020, muito mais que aquelas dimensões que me confundiam. Olhando com bastante precisão, talvez o ano fosse análogo a Arca de Noé, com todas as suas urgências. A ordem de sua natureza seletiva, cabeças pensantes e flutuantes. A quem confiaria esse filtro? Ali, em suas dependências e tantos níveis, retrospectivas tristes de espécies que não conseguiam uma segunda chance. Porém os muitos que se salvaram não negam a missão. Com o mesmo empenho, solidário, generoso, suado. Prossegue a reconstrução.
Então é 2021….Em consonância a todo o movimento que tanto se almeja , a arca começa a ganhar ares de ARCO… ÍRIS!!! Do cativeiro á liberdade que nos cativa…
Aqueles pedaços que se despencavam foram colados um a um. Uma liga de continentes. Obra um pouco atrasada, confesso. Nem todos estavam preparados ou acreditavam no melhor resultado. As dúvidas, muitas vezes maiores que as certezas. Mas à frente de todos, um mar de esperanças se abria e rasgava o horizonte com vistas à um mundo Novo!!!
2021, restauração!
A vida é uma senhora arte que nos ensina o tempo todo a transformar os tempos!
…Movimentos…. ancorados ou não!
Restaurando o destino, com as bênçãos do DIVINO!
Com tantos problemas sua mente continua brilhando.
Me resta tentar juntar meus cacos.
Parabéns
Parabéns pelo seu talento Julia! Seu texto nos convida a boas reflexões sobre o momento atual. Acredito que vamos precisar de muita inspiração e criatividade para a construção do novo mundo.
Belo texto!!!
Júlia, são suas marcas: competência criativa e habilidade em transmitir sua sabedoria. Parabéns.
Sigamos transformando o tempo…..
Ju, a maneira com a qual cê brinca com as palavras e seus múltiplos significados é muito sensível e incrível!
Que venha 2021 para reunir os bons cacos de 2020 numa bela obra de restauração, e deixar os cacos cortantes irem embora com o fluxo natural das coisas. Feliz 2021!!
Sábias palavras,Para refletimos.
Temos que juntas ,os cacos e fazer um versão melhor. De nos .
Para 2021
Muito sensível o texto sobre resignificação. Acho que desapegar do que machuca e deixar para trás o que não lhe faz sentido não é uma fraqueza e sim um ato de amor próprio.
Ainda temos muito oque aprender mas o processo de auto conhecimento é necessário para dar novos significados aos processos.
Fada Madrinha, que belíssimo texto.!!!
Fiquei imaginando aquele senhor fazendo a restauração dos objetos e me fez lembrar de uma passagem da bíblia:
Jeremias 18. Onde ele foi até a casa do Oleiro e o viu fazendo um vaso de barro.
Esse vaso somos nós., O oleiro é Deus.
As vezes precisamos de consertos. Com o tempo aparece algumas trincas, ou descascado, ou até mesmo quebrado. Mas Deus é misericordioso e nos molda novamente para cada dia sermos melhores. Fomos quebrados em 2020, para sermos restaurandos em 2021. O meu vaso vai ser bem colorido como o arco íris ?
Julia, parabéns pelo texto e por tudo que vc representa. Fantástica leitura, leve e profunda, nós faz refletir o que passamos em 2020 e o que está por vir! Recomecemos a juntar nossos cacos e viver com paz e sabedoria nesse próximo ano! Obrigada amiga, por vc existir na minha vida!
Julia, seu vocabulário é muito vasto e coerente, é sempre divertido ler esses textos que você escreve! Você deveria escrever contos literários e letras de música, livros de poesia… Parabéns pela sensibilidade e pelo divertido jogo com as palavras!